Método do Apego: Antecipar, prevenir e gerir a dor
Estes são os três pilares fundamentais do método do Apego, termo criado pela médica veterinária Cátia Mota e Sá com o objetivo de sensibilizar a classe e os tutores para a temática da dor. Com base na empatia e no conhecimento dos mecanismos da dor, este método permite diminuir o risco de juízos na interpretação dos sinais, sendo fundamental nas decisões clínicas, mas ainda há um longo caminho a percorrer, particularmente na disseminação desta abordagem nos circuitos académicos.
Em que consiste o método do Apego e qual a sua origem?
O método do Apego é um método que pratica a empatia ao serviço do (re)conhecimento da dor em animais. Quando lidamos com pacientes, incapazes de verbalizar a dor, a empatia torna a dor visível, impedindo-nos de a banalizar e de a aceitar como uma inevitabilidade do contexto clínico e hospitalar. A empatia muda assim a nossa perspetiva enquanto decisores clínicos, diminuindo também o risco de juízos na interpretação dos sinais de dor (é mimado, é teimoso, tem mau feitio, ganhou vício, etc.). Desta forma, com base na empatia e no conhecimento dos mecanismos da dor, este método vai ter três pilares fundamentais: a antecipação, a prevenção e a gestão da dor. Pode parecer lógico e, de facto, ele não deixa de ser um método intuitivo, mas como qualquer método, a sistematização facilita a sua integração na consciência das equipas técnicas e na consciência dos tutores. Este método nasceu de uma necessidade de encontrar uma ferramenta de comunicação que me ajudasse a transmitir aos colegas e aos tutores a importância de um maneio adequado desta condição. Na minha prática clínica, como responsável do Centro de Reabilitação Física Animal do Grupo Veterinário Oliveiras, vejo diariamente animais que estão insuficientemente cuidados em termos da gestão da sua dor, apesar de terem tutores preocupados e atentos e equipas técnicas que se preocupam com a sua saúde e bem-estar. Penso que parte desse inadequado maneio vem da falta de um maior conhecimento dos mecanismos fisiológicos da dor e das consequências associadas à sua cronificação, pelo que ao falarmos deste método despertamos uma maior consciência para a sua sinalização, consequentemente, para a sua melhor prevenção e gestão.
Pode aplicar-se em que circunstâncias?
Na medicina veterinária este método pode aplicar-se em muitos contextos clínicos, razão pela qual refiro muitas vezes que podemos e devemos todos praticar uma medicina veterinária com (mais) Apego. A prática deste método depende de dois fatores: da nossa forma empática de estar na profissão (aspeto mais emocional) e da nossa capacidade técnica para tomar decisões clínicas, racionais, ponderadas e conscientes (aspeto técnico). Não somos todos iguais e uns serão naturalmente mais empáticos do que outros, mas a parte boa é que a empatia pode ser exercitada e, como tal, somos todos, em teoria, capazes de praticar o Apego. As circunstâncias, propriamente ditas, aplicam-se sempre a momentos onde já existe dor e/ou onde existe o potencial de se promover dor. A título de exemplo, para um animal que vive com dor crónica, a antecipação/prevenção/ gestão de um evento potencialmente doloroso é particularmente importante, pois a neuroplasticidade inerente à sua condição de doente crónico (estado de sensibilização central) torna-o muito mais sensível e intolerante a estímulos/ agressões pouco ou até mesmo nada dolorosos. Estes serão certamente os animais que mais beneficiarão deste método. Dou-lhe um exemplo prático: imagine um cão de raça labrador, idoso, com doença osteoarticular degenerativa dos cotovelos. Este animal, quando chega ao hospital/clínica já passou provavelmente pela experiência de ser transportado no carro e deslocar-se até à sala de espera pelo seu pé. Quando chega ao CAMV terá de esperar pela sua vez e o mais provável é que se deite no solo enquanto aguarda, apoiando os cotovelos sobre uma superfície fria e dura. Quando o chamamos para a consulta, terá de se levantar de um solo, normalmente escorregadio, e deslocar-se novamente para outra sala onde será examinado. Ainda este animal não entrou na consulta e já passou por uma série de situações críticas potencialmente dolorosas para a sua condição clínica. Ao aplicarmos o método do Apego, vamos, no momento da marcação da consulta, antecipar a visita deste animal e promover diligências no sentido de minimizar os pontos críticos identificados. Assim, aconselharemos o tutor do animal a auxiliá-lo, tanto na entrada/saída do carro como enquanto caminha e se levanta do solo e garantiremos que, ao chegar ao CAMV, terá à sua espera uma superfície antiderrapante e, preferencialmente, acolchoada (manta/colchão) no chão. Outro exemplo está no conceito dos programas “Cat Friendly Clinic”, nos quais o principal objetivo está em diminuir o stress associado à visita do gato ao CAMV. Não há dúvida que este conceito põe em prática o Apego já que o exercício de uma prática clínica focada na diminuição dos níveis de stress dos gatos, é também uma forma de antecipar, prevenir e gerir a dor. Se não vejamos: a catastrofização da dor diz respeito a um fenómeno de potenciação na perceção da dor em indivíduos que se encontram perante uma situação onde identificam uma ameaça ou uma agressão potencial. Este fenómeno está muito bem identificado em humanos e acredita-se que também ocorra em animais. Ao reduzirmos o medo, o stress e a ansiedade associada à visita do animal ao CAMV, estamos a ter um impacto direto na redução da sua própria antecipação da dor, seja nesta ou em visitas futuras ao CAMV.
Que impacto tem na relação do animal com o médico veterinário?
A dor é uma experiência sensorial e emocional percebida como sendo desagradável, que surge num contexto real ou potencialmente danoso, o qual é percebido como sendo uma ameaça à integridade física do indivíduo. Desta experiência resultam mecanismos motores (reflexos de retirada, comportamentos de fuga, inibição motora), comportamentos defensivos e preventivos (que resultam da aprendizagem ou da cognição), assim como mecanismos fisiológicos específicos. Todos estes mecanismos ocorrem no sentido de reduzir o dano e de prevenir a sua recorrência futura – definição da IASP (International Association for the Study of Pain). Esta definição permite-nos compreender que um animal que experiencia dor vai desenvolver mecanismos cognitivos, motores e comportamentais que lhe vão permitir, perante uma circunstância idêntica, atuar no sentido de prevenir a “agressão”. Esta cognição, associada por vezes aos mecanismos emocionais de catastrofização da dor, pode sabotar a relação de confiança do animal em relação ao médico veterinário e tornar a sua próxima visita um acontecimento stressante para o qual iremos obter uma reduzida colaboração do animal, com todas as implicações que daí poderão advir. O melhor exemplo que me ocorre tem a ver com a experiência tão simples como é a do corte de unhas. Se esta primeira experiência for vivida de forma negativa pelo animal (se houver sangramento da unha haverá seguramente dor) é bem provável que tenhamos acabado de criar inadvertidamente uma cognição que vai influenciar o comportamento do animal, não só no próximo corte de unhas, como em qualquer outra visita ao CAMV. Se formos capazes de antecipar, prevenir e gerir a dor associada a este e a muitos outros atos clínicos teremos certamente muitas mais oportunidades de construir experiências agradáveis e, com isso, melhorar a experiência do animal e a sua relação com o seu médico veterinário.
De que forma pode contribuir para o sucesso de um processo terapêutico?
O método do Apego vai muito para além de um conceito filosófico abstrato e baseia-se na compreensão dos mecanismos da dor. Todos sabemos da importância de uma analgesia preemptiva na preparação pré-cirúrgica de um animal. Penso que é claro para todos que, mesmo que a dor não seja percebida durante o processo cirúrgico pelo estado de hipnose, induzido pela anestesia geral, a nociceção ocorrerá em todas as suas etapas anteriores (transdução, transmissão, modulação e projeção). Quer isto dizer que, se falharmos em desenhar uma boa estratégia no âmbito da anestesia e analgesia pré-cirúrgica, quando este animal estiver no momento intra-cirúrgico, além das alterações neurovegetativas consequentes, desenvolverá também uma sensibilização central e periférica que potenciará a sua perceção da dor no período pós-cirúrgico. Tudo isto porque a aferência nocicetiva proveniente da periferia não foi adequadamente prevenida/inibida, algo que poderia ter sido feito se tivéssemos posto em prática um planeamento pré-cirúrgico eficaz com vista à prevenção de todas estas etapas da nociceção. Não falo apenas na prevenção da dor aguda/ cirúrgica onde o recurso a AINE’s, anestésicos locais, opióides e agentes alfa-2 agonistas é da maior importância, falo também da prevenção da agudização da dor crónica (neuropática) – nestes animais é ainda mais importante o planeamento cirúrgico, preconizando antecipadamente uma dessensibilização central, seja com o recurso farmacológico (nomeadamente na utilização prévia de gabapentinóides ou inibidores dos recetores NMDA) ou com o recurso a algumas técnicas de neuromodulação periférica e central da dor, como é o caso, por exemplo, da Acupuntura. Assim, e em conclusão, se falharmos no maneio da dor pré-cirúrgica, por muito boa que seja posteriormente a nossa abordagem à dor, se não fomos capazes de antecipar e prevenir a nociceção pré e intra-cirúrgica, os mecanismos de neuroplasticidade (sensibilização central e periférica) vão ser uma importante limitação ao adequado maneio da dor no período pós-cirúrgico e um fator de risco de desenvolvimento/agravamento de dor crónica no médio e longo prazo. Em última instância será um grande entrave ao sucesso do próprio procedimento cirúrgico, algo que vejo com frequência na minha prática clínica, onde os insucessos de cirurgia ortopédica que me chegam são, na sua na sua maioria, consequentes a uma dor crónica pré-cirúrgica não adequadamente gerida. Alguns autores reconhecem que a probabilidade de um doente receber mais ou menos analgesia é dependente do profissional que decide esse mesmo tratamento (Corradi-Dell’Acqua et. al.,2019). Dos vários critérios que podem afetar esta decisão podem estar a capacidade técnica no domínio da prescrição e preconização dos tratamentos analgésicos, o receio de errar ou de obter um efeito indesejado e a capacidade para reconhecer o impacto da dor para aquele mesmo paciente (empatia). Ora, no que se refere à empatia, existem estudos que demonstram claramente uma diferença significativa, mediante o género e até as várias especialidades clínicas humanas, o que pode antecipar diferentes graus de empatia destes profissionais em relação à dor dos seus pacientes. Por exemplo, segundo Hojat et al., 2002, um estudo realizado com 1007 profissionais médicos do sistema nacional de saúde na Filadélfia permitiu concluir que as mulheres demonstraram ter mais empatia que os homens. Este mesmo estudo também permitiu perceber que, entre as várias especialidades clínicas existem igualmente diferenças significativas, com maior empatia atribuída às especialidades da psiquiatria, medicina interna, pediatria, medicina intensiva e medicina familiar, ficando as especialidades de anestesia, ortopedia, neurocirurgia, radiologia e cirurgia cardiovascular identificadas como sendo aquelas que incluem profissionais com menor empatia. Um outro estudo, realizado em 2000 por Paul e Podberscek, concluiu também que, numa população de estudantes de medicina veterinária de duas universidades britânicas, os estudantes do género feminino mostraram ter alto grau de empatia em relação aos animais, em comparação com os seus colegas do género masculino, que mantinham baixa empatia ao longo dos vários anos de formação académica. Ora estas variações terão certamente um impacto no reconhecimento da dor e, consequentemente, nas decisões clínicas e terapêuticas, pelo que quanto mais despertada e exercitada for a prática da empatia pelos profissionais veterinários em geral, maior será certamente a sua eficácia na antecipação, prevenção e gestão da dor.
É quase que um descodificador da linguagem dos animais… Quais são os sinais mais fáceis e mais difíceis de perceber?
Sabemos que as espécies que têm predadores no seu habitat natural não manifestam sinais de doença, exceto em situações muito extremas. Isto é particularmente real no caso dos gatos (mestres do disfarce) e nas espécies exóticas. Já o cão, esse pertence a uma espécie que manifesta de forma mais expressiva a dor. Então, não sendo um descodificador da dor, este método, ao praticar empatia, permite-nos atuar na prevenção da dor através das nossas experiências vividas em relação à dor enquanto indivíduos sencientes e racionais. Ao fazê-lo não ficamos apenas dependentes da leitura da dor no animal, mas sim também da nossa capacidade de racionalizar acerca de como nos sentiríamos ao estarmos numa ou outra determinada situação idêntica.
Poderia identificar algumas situações da prática clínica onde este método pode ser aplicado?
No nosso caso, como lidamos com animais que vivem com limitações motoras e dor, a prática do Apego é ainda mais importante, pelo que ela está implícita na nossa forma de estar e de trabalhar o animal. Nesse sentido, auxiliamos sempre que necessário no transporte entre o carro e o CAMV e asseguramos que à chegada ao centro, os animais tenham à sua espera uma superfície antiderrapante e almofadada. Promovemos sempre o uso de auxiliares de locomoção ergonómicos (em vez das habituais toalhas por baixo do abdómem), assim como a utilização de botas/sapatos que previnam os acidentes tanto no centro como em casa. Adicionalmente, toda a nossa abordagem terapêutica tem como pilar estratégico o tratamento da dor, seguindo os restantes objetivos terapêuticos uma lógica de satélite ao redor deste grande objetivo. Isto prende-se porque percebemos que na presença de dor não existe uma função capaz, pelo que quando pretendemos reabilitar funcionalmente ou promover um plano de fortalecimento muscular, de nada nos serve um excelente plano intensivo de reabilitação funcional, se a dor não estiver convenientemente gerida. Em animais que vivem com limitações neurológicas, por exemplo, é muito fácil que estes animas apresentem dor miofascial consequente à fadiga e à compensação muscular, pelo que é muito importante que todos os elementos da equipa sejam capazes de identificar estas situações. Para além disso, todas as modalidades e procedimentos terapêuticos que são realizados no nosso centro pressupõem implicitamente que o animal esteja confortável antes, durante a pós a realização dos mesmos. Os colchões e as mantas são por isso o substrato de qualquer modalidade manual ou física que implique um decúbito do animal. Permitir aos animais terem tempos de interação social, tanto entre eles, como connosco é também uma parte da nossa estratégia do Apego, já que nos permite zelar pela sua componente emocional e cognitiva da dor. Num contexto clínico e hospitalar, são oportunidades de Apego os seguintes exemplos: Promover uma boa acomodação na hospitalização, impedindo o animal de escorregar nas jaulas, permitindo que estejam deitados e apoiados sobre superfícies macias e almofadadas; promover intra-operatoriamente, e sempre que possível, um posicionamento da cabeça, tronco e membros que tenha em consideração os tempos cirúrgicos e as condições clínicas pré-existentes; praticar uma medicina um “pouco menos acelerada”, permitindo-nos ter tempo para também apaziguar emocionalmente a sua dor; proporcionar aos nossos pacientes e ao longo da sua vida, experiências o mais agradáveis possíveis no contexto clínico; promover uma boa estratégia analgésica na realização de procedimentos potencialmente dolorosos como sejam provas radiográficas, mudanças de pensos e limpezas de feridas, exploração e tratamento de ouvidos em animais com otite; adotar um modelo “PetFriendly” para a redução dos níveis de stress na visita ao CAMV, particularmente importante em gatos, mas não exclusivo desta espécie.
Podemos referir então que o método do Apego permite ao médico veterinário interagir e perceber o animal de forma mais eficaz?
Absolutamente de acordo. Ao praticar a empatia, vamos colocar-nos na sua situação e perceber melhor a sua experiência em concreto, mas sem perder a nossa própria realidade. Não confundamos este conceito com a antropomorfização, na qual vemos o animal à nossa imagem. Este processo dificulta até o reconhecimento da dor, pois faz-nos procurar manifestações humanas da dor (por exemplo o queixume ou choro) que não existem nos animais e que, na sua ausência, impede o reconhecimento da dor. Também não confundamos com a compaixão, onde existe um sentimento de pesar e tristeza em resposta à perceção do sofrimento alheio. Assim, para pôr este método em prática, não se trata de viver a dor do animal, mas sim de perceber o seu impacto, através de um ângulo de visão que nos mostra a perspetiva de como seria se fossemos nós a vivenciar determinado momento – aqui também são conceitos distintos, em que a compaixão nos pode levar à exaustão emocional, não permitindo necessariamente que ajudemos o animal (por retirar objetividade às nossas decisões Clínicas) e a empatia, pelo contrário, permite-nos auxiliar a saúde dos nossos pacientes sem que isso nos afeta emocionalmente.
Este método já é comum na prática da medicina veterinária?
Conheço muitos médicos veterinários que praticam medicina veterinária com Apego de uma forma absolutamente intrínseca e natural. Reconheço, contudo, que, por vezes, na azáfama da correria diária, e onde as equipas são cada vez mais multidisciplinares e com grande rotatividade de turnos, pode ser difícil passar desta individualidade para uma consciência coletiva que se reflita num Apego consistente e constante. É talvez por isso tão importante materializarmos e sistematizarmos este conceito e atribuir-lhe um nome de tal forma que, quando falamos dele todos saibamos do que estamos a falar.
Como está a ser a recetividade por parte dos médicos veterinários?
Apesar de ter uma imagem clara deste método e de ele refletir também a nossa identidade (grupo veterinário das Oliveiras) enquanto CAMV prestador de cuidados veterinários e enquanto marca empresarial, senti uma necessidade de promover uma consciência mais global da importância do Apego. Lidando diariamente com animais com dor, e percebendo em inúmeras situações o quanto a prática deste método poderia ter ajudado estes animais no seu percurso até chegarem até mim, decidi que deveria colocar em prática uma ação de sensibilização junto da classe e tutores. A ferramenta de comunicação que encontrei foi encontrar este pseudo-acrónimo (APeGo) para comunicar esta mensagem com os colegas, enfermeiros e tutores. Quando comecei a falar sobre o método do Apego em formações e nas redes sociais, senti que a mensagem teve um eco imediato, o que revela recetividade do lado de quem me ouvia. Na altura lancei aos colegas o desafio de registarem um momento de “Apego” na sua prática clínica e de o partilharem nas suas redes sociais também, contribuindo assim para a divulgação desta mensagem. Foi muito interessante verificar que entre colegas portugueses, espanhóis e latino americanos, com quem contacto regularmente, houve uma imediata adesão a esta ideia. Quem sabe esta mensagem possa ter eco aqui também.
Os cursos de medicina veterinária em Portugal incluem de alguma forma esta abordagem no seu plano?
De todo. A minha perceção é que o diagnóstico e tratamento da dor (mas sobretudo a avaliação da dor) são campos amplamente deficientes na formação de médicos e enfermeiros veterinários. O problema é que, como vimos anteriormente, para praticar o método do Apego, não basta empatia – há também que compreender os aspetos técnicos relacionados com os mecanismos fisiológicos da dor e com o seu tratamento. Falta por isso mais formação académica nesta área e um maior entendimento das consequências da dor na saúde, qualidade de vida e bem-estar dos nossos pacientes.
O que ainda falta fazer em Portugal?
Penso que a consciência nasce com o conhecimento. Apesar do extraordinário avanço que temos tido nos últimos tempos no âmbito de áreas onde a gestão da dor é determinante (falo, por exemplo, da Oncologia, da Ortopedia e da Neurologia), penso que o conhecimento da dor não acompanhou necessariamente esta evolução. É pelo menos a minha perceção enquanto responsável por um serviço de diagnóstico e tratamento da dor em Portugal e enquanto formadora no âmbito da reabilitação e dor em pequenos animais. Assim, considero que falta prestar mais atenção a este tema nos diferentes circuitos académicos, e faltam mais ofertas formativas disponíveis no mercado. Não falo só de formação em anestesia e analgesia, mas essencialmente formação base que pressupõe o ensino dos mecanismos da dor e das consequências que uma agressão severa ou persistente no tempo tem para o desenvolvimento de fenómenos de neuroplasticidade e memória neurológica da dor. Naquela que é também a minha perceção, considero que falta uma maior consciência sobre a dor miofascial, uma condição dolorosa, altamente incapacitante e tão prevalente nos nossos pacientes e para a qual somos ainda poucos os que estão sensibilizados e capacitados para a identificar e tratar. Aliás, esta foi a razão pela qual decidi criar recentemente uma formação de Avaliação da dor miofascial.
Que papel tem o médico veterinário em sensibilizar os tutores para este tema?
Muito sumariamente, a dor tem 4 componentes: sensorial (diz respeito à intensidade, localização, duração da dor); motor (diz respeito às limitações/ inibições motoras e compensações posturais); cognitivo (diz respeito à aprendizagem e à antecipação da dor) e por último, mas não menos importante, a componente emocional (diz respeito à forma como a dor fá-los sentir – assustados, ansiosos, amedrontados, deprimidos, entre outros. Se formos capazes de identificar que componentes estão presentes, quais podem ser antecipados e quais podem ser prevenidos e geridos, saberemos com toda a certeza apresentar soluções e recomendações acerca da forma como estes tutores lidarão com os seus animais. Está apenas nas nossas mãos aumentar esta consciência. Desde os cuidados de maneio e bem-estar, às recomendações nutricionais, aos conselhos acerca das adaptações ambientais (rampas, soluções antiderrapantes, sistemas de auxílio à locomoção) até às soluções que ajudam os animais a lidar melhor com a sua dor (enriquecimento ambiental, por exemplo.). Tudo isto sem esquecer a importância de recomendar avaliações regulares e, se necessário, um acompanhamento profissional com competências acrescidas no diagnóstico e tratamento da dor – falo naturalmente dos serviços de tratamento de dor e reabilitação física animal, os quais estarão, à partida, mais vocacionados para lidar com esta realidade.
Citações: 1. Corradi-Dell’Acqua, C., Foerster M., Sharvit G., Trueb L., Foucault E., Fournier Y, Vuilleumier P., Hugli O., “Pain management decisions in emergency hospitals are predicted by brain activity during empathy and error monitoring” (2019). British Journal of Anaesthesia, 123 (2): e284ee292 2. Hojat, Mohammadreza; Gonnella, Joseph S.; Nasca, Thomas J.; Mangione, Salvatore MD; Vergare, Michael; and Magee, Michael, “Physician empathy: definition, components, measurement, and relationship to gender and specialty” (2002). CRMEHC Faculty Papers. Paper 4. http://jdc.jefferson.edu/crmehc/4 3. Podberscek, A. L., Paul, E. S., & Serpell, J. A. “Companion animals and us: Exploring the relationships between people and pets” (2000). Cambridge University Press
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 144 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de dezembro de 2020.